A organização e participação dos pacientes, a transição tecnológica e a avaliação de resultados são a chave para atualizar o sistema de 1986
A encruzilhada atual do sistema de saúde espanhol tem várias cabeças. Como uma Hidra, não se sabe qual cortar primeiro sob o risco de lhe crescer outra. E, também como no caso do animal mitológico, dada a complexidade da questão, são tantos os focos quanto as opiniões dos intervenientes. No último encontro organizado pela Llorente y Cuenca sobre o assunto, uma apresentação por um lado sobre o seu relatório sobre tendências no sector para este ano, as diferentes contribuições que foi possível articular em torno de três eixos: a organização do próprio sistema, com desigualdades territoriais incrustada e uma participação precária dos pacientes; as mudanças tecnológicas, que vão mais para além do uso de aplicações, fármacos ou aparelhos mais complicados, e que passa pela digitalização dos processos; e a necessidade de avaliar continuamente o que se faz desde o momento da contratação ou aprovação de tecnologias, quer para descartar essa linha, quer para a potenciar.
1. Organização do sistema
A atual distribuição de competências que culminou em 2002, deixou os cuidados de saúde nas mãos das 17 comunidades, com as exceções de Ceuta e Melilla, nas mãos do Ministério da Saúde, e a cobertura de funcionários públicos, derivada para a Muface, Isfas e Aseju. Estes vários agentes implicaram a existência de “uma quebra nos resultados de saúde”, afirma Carina Escobar, presidenta da Plataforma de Organizações de Pacientes (POP). Francisco Javier Fernández, diretor geral do Colégio Oficial de Farmacêuticos de Madrid (COFM) e ex-diretor de comunicação da Farmaindustria, opina que o “sistema está extenuado”. “Estamos há demasiados anos sem um planeamento a longo prazo e com financiamento inadequado”, acrescenta Fernández, e “o colapso dos cuidados de saúde primários” é um bom exemplo. “O modelo de saúde universal, de administração pública, dificulta muito a melhoria e inovação organizativa”, adverte Carlos Alberto Arenas, vice-presidente da Fundación Economía y Salud (FES).
1.1 Diferenças territoriais
Escobar insiste: “Atualmente não existe uma cobertura universal nem equitativa”. “É preciso trabalhar na territorialidade. É preciso atualizar a estratégica de cronicidade. Não estamos a fazer nada pela prevenção. Faz falta coesão territorial em e entre as comunidades autónomas. A diferença no acesso a tratamentos e testes não é nada boa”. E coloca um exemplo em primeira pessoa: ela, que é das Canárias, nem prevê voltar às ilhas para não perder o acesso ao tratamento que necessita para a sua doença crónica. Carmen Aláez, adjunta na Secretaria Geral da Federação Espanhola de Empresas de Tecnologia da Saúde (Fenin), expõe que existem biomarcadores, por exemplo, que só são financiados em algumas Comunidades Autónomas.
1.2 Saúde oral
Um claro exemplo desta situação é a saúde oral, cujas doenças se encontre entre as patologias não- transmissíveis mais difundidas à escala mundial, já que se estima que afetem cerca de 3.500 milhões de pessoas. Em Espanha, a saúde pública encarrega-se, em geral, de aspetos básicos como as extrações, mas deixa o resto nas mãos de sistemas privados. E cada comunidade oferece um portefólio de serviços diferente. Cada vez há mais evidências de que o estado dos dentes e gengivas influencia o estado das pessoas (foram relacionados com problemas cardiovasculares e diabetes, entre outros). É, junto com a saúde mental, uma das áreas terapêuticas onde há claramente muita margem para melhoria, o que, por sua vez, e como temem os pacientes, conduz a desenvolvimentos muito desiguais. Por isso, os especialistas afirmam que os serviços de saúde oral devem estar incluídos nos planos nacionais de cobertura de saúde, gratuitamente ou a um preço acessível.
1.3 Política
“A politização não convém a ninguém”, afirma Escobar, para quem os prazos eleitorais e a perspetiva a curto-prazo dos partidos impede abordar planos mais ambiciosos, não obstante a sua atuação como grupo de pressão junto dos partidos políticos. Fernández sublinha um dado que pode indicar um certa negligência desta responsabilidade pelos diferentes Governos. “Tivemos 25 ministros da Saúde em 45 anos de democracia, um a cada ano e meio. É preciso haver planos a longo prazo, com a necessidade de investir nos mesmos”. De facto, fontes informadas sobre a evolução do departamento indicam que ao terminar as transferências para as comunidades se chegou a planear que o ministério desaparecesse como tal, e que ficasse integrado nos Assuntos Sociais ou outro departamento similar. As subsequentes crises, culminadas pela da covid, evidenciaram que fazia falta um ministério forte, “que possa liderar a mudança” e que coordene as políticas de saúde das comunidades autónomas como disse Aláez.
1.4 Cronicidade
“A estratégia sobre a cronicidade está obsoleta”, concordam a representante da POP e Aláez. “É preciso medir bem a cronicidade”, insiste Escobar. Segundo explica, isto é feito atualmente através das receitas. Se um paciente recolhe periodicamente um medicamento para uma patologia, é considerado doente crónico da mesma. Mas existem comunidades que contabilizam as receitas por marca, e outras por princípio ativo, o que altera os resultados. A solução, segundo a presidente da plataforma de pacientes, é que exista “um compromisso de todos os agentes durante vários anos”, mas isso é difícil porque existe “um problema de liderança” num sistema mais inclinado para distribuir competências do que a coordená-las ou estabelecê-las. “A Cronicidade deve entrar na agenda de prioridades políticas”, insiste Arenas.
1.5 Saúde líquida
Arenas concorda com o diagnóstico dos seus companheiros de jornada: “O sistema está extenuado, fazem falta reformas de monta e o modelo não comporta mais remendos; é necessário transformar o modelo da saúde”. Ele consegue ver “duas alavancas das velocidades: a participação dos pacientes e os cidadãos na instituição e a organização dos hospitais e centros de saúde propriamente ditos”. Sobre a primeira, no que concorda plenamente Carina Escobar, “é preciso passar do consentimento informado a uma informação exaustiva ao paciente que conduza a decisões partilhadas”.
Sobre o aspeto institucional, opina que existe a dificuldade de chegar a uma “organização líquida interna” porque o sistema nacional de saúde “é muito piramidal”. “Funciona por serviços muito fechados, enquanto que uma saúde líquida passaria por funcionar por projetos, por patologias, com uma organização mais matricial do que hierárquica”. Por isso, ele opina que reformar a gestão dos recursos humanos é prioritário.
1.6 Cuidados integrais
Fernández, em representação dos farmacêuticos, prefere falar de cuidados integrais, um conceito “que tem que ver com a mudança do perfil do paciente e das necessidades do sistema de saúde”. “Propomos uma maior contribuição da farmácia no seguimento e monitorização dos pacientes, com ma maior interlocução e cooperação entre os farmacêuticos comunitários e os níveis de assistência de cuidados primários e hospitalares. Num momento como o atual, depois da experiência da pandemia e a situação de colapso nos centros de saúde, esta questão tem ainda maior relevância”.
1.7 Medicina proativa
Os especialistas concordam que o desafio do sistema de saúde hoje está “na prevenção e na deteção precoce”, como diz Fernández. “É preciso falar de saúde a médio e longo prazo”, sublinha Escobar. Para isso, é preciso elaborar “planos com ma visão de conjunto e sabendo da necessidade de investir nos mesmos”, acrescenta o porta-voz dos farmacêuticos.
2. Financiamento
Toda esta necessidade de prevenir e medir conduz a um uso eficiente da tecnologia de saúde, inclusive dos medicamentos. Com o subsequente desafio do financiamento das novidades. O que leva a rever o modelo através do qual se decide quais e como se pagam, afirma Fernández, ex-diretor de comunicação da Farmaindustria, que agrupa os laboratórios inovadores. A situação atual, com produtos cada vez mais específicos para perfis concretos de pacientes, o que repercute no seu preço, faz com que a metade dos medicamentos aprovados na UE nos últimos quatro anos não estejam disponíveis em Espanha, exemplifica. “É um tema que deveria estar na agenda. É uma perda de oportunidades. Caso se trate de um problema económico, será necessário discutir o modelo de financiamento”.
2.1 Custo-benefício
Arenas afirma que, neste sentido, a solução passa por por “trabalhar na contratação por valor em medicamentos”. No caso dos antivirais para a hepatite C, demonstrou-se o seu custo-benefício porque, de facto, curam a doença, expõe, mas em outros fármacos “é mais difícil saber” essa relação, e propõe um pagamento “por valor e qualidade de vida ganha”. Aláez acrescenta que, por exemplo, a Sedisa (a Sociedade Espanhola de Dirigentes da Saúde), elabora um Observatório de Resultados na Saúde que pode ser um exemplo e guia para este replaneamento.
2.2 Participação
Em todo este processo já participam as organizações de pacientes, mas a presidente da POP insiste: “Queremos ter voz e voto nas decisões sobre o acesso às terapias. É muito importante. Já participamos em relatórios de posicionamento terapêutico (IPT), mas depois não temos feedback sobre o porquê de se incluirem ou não as nossas sugestões”. Escobar afirma que para saber o valor real de um medicamento “é preciso perguntar ao paciente”. “A inovação tem de estar ao serviço dos cidadãos”, e, para isso, “é importante ter circuitos mais rápidos” que facilitem o controlo. Os representantes das farmacêuticas confiam que o plano europeu de acesso aos medicamentos agilize os processos e revisões. Ao que Aláez acrescenta o plano Inveat (Investimento em Equipamentos de Alta Tecnologia) financiado com fundos europeus, que o Ministério da Saúde implementou para renovar os equipamentos de alta tecnologia do Sistema Nacional de Saúde (SNS), dotar de maior densidade de equipamentos as zonas onde haja escasses e dispor de dados de maior qualidade e resolução para melhorar os cuidados aos pacientes.
3. Digitalização
Todos os pontos anteriores têm um fator comum: o valor que pode contribuir a transformação e digitalização do sistema de saúde e dos processos de assistência, como assinala Aláez, para a melhoria da sua conectividade, qualidade e eficiência e que permitirá automatização de processos de saúde e a aplicação da inteligência artificial no diagnóstico e tratamento dos pacientes.
3.1 Dados
Mas todo este processo tem um ponto de partida: a qualidade dos dados com que se alimentam os sistemas de inteligência artificial, onde é essencial a tecnologia de saúde, assinala Arenas. Deve-se impulsionar um sistema de saúde de altos desempenhos, baseado na Medicina de Precisão, nas terapias avançadas e na inteligência artificial.
A medicina de precisão implicou uma mudança de paradigma quanto ao diagnóstico e ao tratamento do cancro, pela possibilidade que oferece de conhecer melhor a doença e o seu prognóstico de forma individualizada.
3.2 Pacientes e lacunas digitais
Não se pode falar de digitalização sem abordar o tema da lacuna digital, esses 40% de idosos, os mais afetados por patologias crónicas, que não acede à internet. “Já existem exemplos de sistemas e soluções simples e intuitivas como uma chamada telefónica que permitem o contacto e acompanhamento dos pacientes de forma remota. Arenas insiste neste assunto de que “os dados clínicos são propriedade do paciente”. “O consentimento é muito importante”.
3.3 Transparência e medição
Um aspeto chave na digitalização é a homogeneização dos dados para se poder comparar, assinala Arenas. Algo que não ocorre nem nos parâmetros que há anos estão sob vigilância, como as listas de espera, concordam os representantes dos farmacêuticos e dos pacientes. “É difícil recompilar e existe um déficit de dados dos historiais clínicos”, indica Arenas, para quem a estratégia de digitalização europeia será uma oportunidade importante.
3.4 Avaliação de resultados
Aláez afirma que seria importante introduzir infraestruturas suficientes e sistemas partilhados e interoperáveis com paineis de controlo integrais para análise dos dados”.
Também é importante avançar quanto aos modelos de contratação baseados na qualidade e nos resultados da saúde, o que terá, além disso, um impacto positivo no desenvolvimento da inovação.
O diagnóstico parece claro e partilhado. Mas os especialistas, como os que intervêm neste relatório, não são necessariamente os prescritores do tratamento. As atuações são responsabilidade dos Executivos autónomos, o que os faz ser, no melhor dos casos (Escobar, por exemplo), moderadamente otimistas de que cheguem os progressos dos planos plurianuais concertados.
Carina Escobar Presidenta de la Plataforma de Organizaciones de Pacientes (POP)
Francisco Javier FernándezDirector general del Colegio Oficial de Farmacéuticos de Madrid
Carmen Aláez Adjunta a secretaria general de la Federación Española de Empresas de Tecnología Sanitaria (FENIN)
Carlos Alberto Arenas Vicepresidente de la Fundación Economía y Salud