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Gustavo Cisneros foi um dos empresários mais relevantes do mundo hispano e dos Estados Unidos nos últimos 50 anos. Herdou do pai um importante grupo empresarial na Venezuela, mas o seu otimismo e a sua insaciável curiosidade o levaram a expandi-lo para toda a América Latina, os Estados Unidos e boa parte da Europa. Neste processo, enfrentou todos os tipos de dificuldades, entre elas algumas de caráter político devido à ascensão do populismo no seu país. Apesar disso, alcançou o seu propósito: criar uma empresa sólida em muitos setores da economia — do engarrafamento de bebidas à televisão e ao turismo — e, ao mesmo tempo, gerar um impacto positivo na sociedade por meio do investimento em sustentabilidade, educação e arte.
Cisneros morreu em 29 de dezembro de 2023. Nos anos anteriores, José Antonio Llorente, fundador da LLYC e ele foram parceiros empresariais e se tornaram amigos. A revista Forbes pediu para José Antonio escrever um obituário do seu amigo. Foi um texto emotivo e memorável. “Gustavo não era uma pessoa normal e comum, com certeza não era — escreveu. Era uma pessoa especial, parecia que tinha sido tocado por uma magia que o tornava avassalador, persuasivo, divertido, vendedor, inspirador em qualquer situação que surgisse no seu caminho”. O certo é que muitos desses adjetivos podiam ser atribuídos também a Llorente. O que nem todos sabem, por outro lado, é que ele precisou de ajuda para escrever o artigo, pois estava gravemente doente e, de fato, essa homenagem ao amigo foi um dos seus últimos atos. Faleceu em 31 de dezembro. Nesse mesmo dia a revista publicou o texto.
Nesta conversa descontraída e comovente, Adriana Cisneros e Alejandro Romero falam da amizade dos seus predecessores e das suas lições de liderança e impacto social
Adriana Cisneros sucedeu o pai como CEO do Grupo Cisneros e Alejandro Romero é hoje, o CEO Global da LLYC. Ambos trabalharam durante muito tempo com seus predecessores e os conheciam profundamente, tanto pessoal como profissionalmente. Nesta conversa descontraída e comovente, eles falam da amizade de Gustavo e José Antonio, das características que os levaram a ser os singulares e bem sucedidos líderes que foram e da importância que deram ao impacto social das suas empresas. Mas, uma vez que o tema deste número da revista UNO é a polarização social na qual vivemos, destacamos uma das muitas características que eles compartilhavam: a capacidade de escutar opiniões diferentes e a vocação para estabelecer pontes entre pessoas e nações.
A LIDERANÇA CURIOSA
Adriana: É brilhante que estes senhores, àquela idade, tenham decidido virar melhores amigos. Acredito que isso fala muito sobre o tipo de pessoa que eram e do que tinham em comum. Eram muito curiosos, sempre estavam dispostos a entender os pontos de vista dos outros, o que as pessoas pensavam, fossem elas velhas ou jovens. E acredito que esse entusiasmo deu origem à amizade deles, que era maravilhosa e dinâmica; estratégica, em alguns momentos; mas simples e divertida na maior parte do tempo. Acho que essa abertura à possibilidade de algo novo definiu a liderança deles. Meu pai era curioso, otimista, tinha vontade de estar sempre por dentro de tudo o que acontecia a cada momento. E José Antonio era igual. Eles eram os velhos mais jovens que conhecíamos. Alejandro e eu sempre ríamos porque quando tínhamos que trabalhar com eles sempre ficávamos exaustos. Eles eram os primeiros a chegar à reunião e os últimos a ir embora da festa, e tinham dez vezes mais ideias do que nós. Alejandro e eu sempre ríamos. Porque de certa maneira éramos nós que tínhamos que conter a avalanche de propostas do meu pai e do José Antonio. E, em parte, foi por isso que herdamos essa amizade.
Alejandro: José Antonio e o sr. Gustavo eram homens modernos. Este estava atualizado sobre o que acontecia no Facebook ou como o X funcionava. Claro, José Antonio tinha uma personalidade digital muito desenvolvida. Mas, dado o tema da revista, também é preciso destacar a capacidade que ele tinha de se entender com os dois lados, inclusive os dois extremos. O sr. Gustavo podia se encontrar com Barack Obama e com George Bush, com Donald Trump e Bill Clinton, com Felipe González e com José María Aznar. A melhor maneira de evitar a polarização é ter a capacidade de dialogar e de entender os dois lados. Aprendi algo parecido com o José Antonio. Poucas pessoas tiveram a capacidade de escutar que ele tinha. E para evitar a polarização, é preciso ter a capacidade de convocar os dois extremos. Ambos poderiam estar nas casas do sr. Gustavo e do José Antonio. A virtude está no equilíbrio, e o equilíbrio é o ponto médio. Eu levo isso para a minha liderança.
Adriana: Meu pai também tinha uma questão de empatia. Ele podia aterrissar em qualquer país e sabia que conseguiria fazer conexões e estabelecer negócios e entender o mercado. Acho que isso, a capacidade de viajar o mundo todo, também tinha a ver com o sucesso do José Antonio. Talvez fosse uma característica genética: o meu avô poderia ter decidido se tornar o rei da Venezuela, mas achou que a Venezuela estava pequena para ele. Isso passou a fazer parte do DNA do grupo. Nunca nos sentimos limitados pelas fronteiras.
Mas essa questão das fronteiras é complexa. Às vezes os sócios ou amigos norte-americanos me ligam e pedem conselhos sobre como expandir os seus negócios na América Latina. É um erro. É como se eu disse que quero me expandir na África. Ou seja, você pode ter uma estratégica global, mas a estratégia tem que ser ao mesmo tempo hiperlocal, e uma coisa tem que andar de mãos dadas com a outra. Acredito que muito do sucesso das coisas internacionais que fizemos vem da compreensão disso.
Para evitar a polarização é preciso ter a capacidade de convocar os extremos. Ambos poderiam estar presentes nas casas de Gustavo e José Antonio. A virtude está no equilíbrio
Alejandro: O sr. Gustavo transmitia a ideia de que o mundo é pequeno e é possível tomar café da manhã em Nova York, almoçar no Panamá e jantar em Buenos Aires. Lembro da apresentação do primeiro livro dele. Ele dava duas entrevistas coletivas por dia, em dois países diferentes. Ser cidadão do mundo impulsionou a sua visão dos negócios. José Antonio aprendeu um pouco disso com o sr. Gustavo. Ele viu rapidamente que a expansão natural da empresa seria pela América Latina porque se fala espanhol na região. Não significava que seria fácil. Na verdade, era muito difícil. Mas para uma empresa de comunicação de origem espanhola isso era o mais simples. Além disso, no caso de José Antonio, tinha o europeísmo, ele defendia muito o conceito de Europa. Mas além de não se limitar pelas fronteiras, ambos acreditavam fervorosamente que a inclusão, a diversidade e a multiculturalidade faziam parte do sucesso dos seus negócios.
O ENVOLVIMENTO SOCIAL
Adriana: Eles tinham um envolvimento social que, no caso do meu pai, tinha a ver com uma certa ideia de cidadania. Para ele, era uma coisa muito sofisticada, não algo que alguém disse que ele deveria fazer por questões de posicionamento. Além disso, ele teve a sorte de ter uma mãe, Patricia Phelps, a Patty, como parceira intelectual. Ele sempre focou na educação. Mas também em outras coisas. Quando entramos em um país para montar uma operação, temos uma concepção de tempo diferente da de muitas outras empresas. Nós, em geral, ficamos em um país por muito tempo. E quando isso acontece, quando você acorda um dia após o outro, tem sempre os mesmos vizinhos… Quando você pensa nisso nesses termos, está disposto a investir no bem-estar dos seus vizinhos e se comportar de uma maneira mais adequada.
Na República Dominicana, por exemplo, a Fundación Cisneros está há 15 anos em atividade, mas eu acabei de começar a construir o hotel Four Seasons dentro de Tropicalia, o desenvolvimento imobiliário da Playa Esmeralda. Quando conseguimos o financiamento com o Banco Interamericano não nos deram apenas a pontuação mais alta de projeto na área social da história do banco, mas também não precisaram nos fazer nenhuma recomendação sobre como melhorar as práticas de investimento social. Isso nunca tinha acontecido. Todos os negócios que fizemos eram de no mínimo médio prazo. E isso nos obrigou a ver qual o nosso papel e faz uma grande diferença. Somos o oposto dos mercenários.
Alejandro: Eu gostaria de destacar algumas coisas que vocês fizeram, como o canal @Clase, o primeiro canal educativo de televisão ou o caso da Miss Venezuela. Provavelmente não existe nada mais fútil na sociedade de hoje do que um concurso de beleza, mas vocês transformaram isso em algo aspiracional, que forma pessoas que normalmente estão em condições econômicas desfavorecidas e conseguem um trampolim para serem artistas, apresentadoras ou líderes das suas comunidades. No grupo de vocês o impacto e a contribuição social sempre andaram de mãos dadas com o negócio.
O envolvimento social de Gustavo Cisneros tinha a ver com uma ideia de cidadania. Não era algo que lhe disseram para fazer por questões de posicionamento
José Antonio também foi sempre muito sensível aos mundos que também compartilhava com o sr. Gustavo. Os dois escreveram livros. Os dois colecionavam arte, mas abriam as suas coleções para pessoas que geraram impacto cultural. As pessoas aprendem com isso… Não porque alguém senta para ensiná-las, mas simplesmente porque elas podem ver o impacto dessas atividades.
Adriana: O meu pai se empenhou muito para que eu fosse a sua sucessora. Eu achava isso uma péssima ideia. No final, decidimos ter uma conversa estruturada durante três anos para que eu pudesse tomar a decisão e quando decidi fazer isso só coloquei uma condição: que ele também me deixasse dirigir a fundação. Eu disse literalmente que a metade do meu coração batia pelos negócios e a outra metade, pelo investimento social. Ele não queria, porque sabia que o trabalho da Fundação é muito grande e muito complexo, mas não teve outra opção. Foi uma das melhores condições que impus na minha vida.
A INOVAÇÃO
Alejandro: Eu disse antes que eles eram duas pessoas modernas. Na homenagem a José Antonio alguém disse que ele era um renascentista. Eu relacionei isso à ideia de estar sempre inovando. Lembro de uma vez, quando uma pessoa de 25 ou 30 anos se queixou de que estava surgindo uma nova rede social, o Threads, para competir com o X. “Deveríamos adicionar o estresse de estar em mais uma rede?”, a pessoa perguntou. E José Antonio respondeu: “Trate-a com carinho”. Ou seja, um homem de 63 anos, que obviamente não era um nativo digital, estava dizendo a um nativo digital para dar atenção e dedicar tempo a uma nova rede para o caso de ela ficar mais importante que o X no futuro. Ele transmitia constantemente essa ideia de: “bem-vindo ao mundo de hoje”. Era preciso experimentar tudo.
Adriana: O tema inovação é um dos mais complexos para qualquer grupo empresarial que existe há muito tempo: manter a disciplina para continuar inovando. É complicado. As pessoas se acomodam, os líderes envelhecem. Nós sempre fomos super inovadores, exceto por um período de uns 15 anos. Quando o Hugo Chávez ganhou e virou presidente, declarou o meu pai inimigo número um do Estado. Chávez fazia as famosas transmissões em cadeia nacional e nos atacava diariamente como grupo, como família e o meu pai, pessoalmente. Ele recebia ameaças de morte diárias. Assim foi tomada a decisão de levarmos o grupo para os Estados Unidos e nos estabelecermos em Miami. A transição foi muito complicada. Foi preciso construir estúdios de produção na Flórida para cumprir o nosso contrato com a Univisión. Levamos os nossos executivos e foi preciso encontrar escritórios, escolas para os filhos dos executivos, etc. Foi nesse momento que começaram a falar comigo e eu me dei conta de que o grupo estava focado em sobreviver, que o tema inovação tinha sido deixado completamente de lado. É muito difícil tentar sobreviver e inovar ao mesmo tempo. Então, eu me dei conta de que, uma vez estabelecidos nos Estado Unidos, e depois de termos conseguido sobreviver, tínhamos que voltar a inovar, inovar e inovar. Então começou a revolução digital.
O interessante da minha chegada não era o fato de eu ser particularmente inteligente ou inovadora, mas que eu representava a chegada de um olhar novo. Eu disse: todos os canais de televisão estão fazendo isso. Existem oportunidades diferentes. Temos que mudar o mindset. E houve receptividade. Voltamos a ser inovadores.
O tema inovação é um dos mais complexos para qualquer grupo empresarial com muito tempo de existência: manter a disciplina para continuar inovando. É complicado
O OTIMISMO ESTRATÉGICO
Adriana: Tanto José Antonio como o meu pai eram pessoas otimistas. E o mundo está dividido entre os que o são e os que não o são. Era o otimismo que fazia o meu pai se levantar todos os dias pensando: “existe uma pessoa nova que posso conhecer, existe um ângulo novo que podemos adotar, existe uma maneira de conciliar esses conceitos”. Era um otimismo que, às vezes, inclusive, se tornava excessivo. Algumas pessoas diziam que o otimismo dele era contagiante, mas para mim, às vezes, era muito pesado. Era de lá que surgia uma energia e uma vontade imbatíveis de continuar fazendo coisas.
Alejandro: Eu acho que esse otimismo também tinha um lado estratégico. Aprendi com os dois que administrar relações também faz parte do mundo dos negócios. Entender-se com os dois extremos faz parte do sucesso no mundo dos negócios. O sr. Gustavo, por exemplo, sempre fazia você se sentir o convidado mais importante da casa. José Antonio fazia algo parecido: se você gostasse de um vinho, chegaria à casa dele e teria esse vinho, e ele tinha escolhido por causa de você. Ele tinha uma capacidade de gerar vínculos emocionais. E depois, claro, isso tinha uma tradução profissional: permitia que eles exigissem de você um esforço extra.
Adriana: Você dava mais um, e depois eles exigiam mais dois.
Alejandro: Exatamente. Era assim mesmo.
Adriana: Mesmo que estivessem contentes, deixavam parecer que você estava devendo um pouquinho mais. Isso fazia parte da dinâmica de trabalho deles.
Alejandro: Você podia fazer o trabalho muito bem, mas eles sempre diziam: “você poderia ter feito isso melhor”. Mas esse vínculo emocional fazia com que você desse muito mais. É nesse sentido que digo que o otimismo deles, a curiosidade, também tinham um elemento estratégico. Eles faziam você se sentir a pessoa mais importante da mesa, mas também pediam mais de você. Era uma característica dos dois.
A LIDERANÇA NA ERA DA POLARIZAÇÃO
Adriana: O mundo sempre foi polarizado. Mas é verdade que isso também está afetando a nossa geração. No entanto, a partir do momento que eu comecei a trabalhar com o meu pai, ele sempre me obrigou a entender o outro lado da equação. Nunca me deixou ficar confortável com o que eu conhecia. Sempre me dizia que era importantíssimo entender qual era a alternativa, de onde vinha esse ou aquele ponto de vista, como os concorrentes viam isso. Eu espero continuar tendo a disciplina de querer sempre escutar o outro lado da equação.
Era importantíssimo entender de onde vinham esse ou aquele ponto de vista, a forma como os concorrentes viam algo. Eu espero continuar tendo a disciplina de querer sempre escutar o outro lado da equação
Alejandro: É preciso aprender com lideranças como as do sr. Gustavo e do José Antonio. Mas você precisa desenvolver a sua própria voz. Eu vi como a Adriana fazia. Aprendi como ela faz para gerar a sua própria voz e criar o seu próprio espaço. E sim, agora a polarização social está mais visível porque existem as redes sociais. Vivemos na ditadura dos algoritmos. Ele dá o que você quer ver e multiplica por cem e isso é tudo o que você vê. Por isso, é preciso aprender com pessoas como eles a importância de ler os dois extremos e, depois, desenvolver a sua própria opinião. O sr. Gustavo convidava todos os tipos de pessoa para a casa dele, intelectuais e jornalistas, para escutá-los e depois criar seus próprios critérios. Tem uma coisa que eu nunca disse para a Adriana. Ela foi me contando coisas, histórias, que me fizeram invejar a infância dela, a forma como esteve rodeada de artistas e escritores. O José Antonio também estava rodeado dessas pessoas. Tivemos a sorte de poder estar em muitos desses fóruns de reflexão, compreendendo que ser capaz de escutar e criar consensos é vital para nos entendermos.
Especialista em Comunicação Financeira, Comunicação de Crise, Marketing e Comunicação Corporativa, trabalhou nos projetos de comunicação de crise mais representativos da América Latina, como Pacific Industrial Bank e Bavaria e a disputa acionária da cervejaria Backus & Johnston. Assessorou grupos econômicos como o Grupo Santo Domingo, da Colômbia, o Grupo Romero, do Peru, o Grupo Luksic, do Chile, as Empresas Polar, da Venezuela, e o Grupo Financiero Uno, na América Central. Liderou três das dez operações mais relevantes na América Latina, transformando-se, assim, em um dos maiores especialistas em Fusões e Aquisições da região. [Espanha]
É formada em Jornalismo pela Universidade de Columbia, tem um mestrado pela Universidade Nova York e cursou o Programa de Desenvolvimento de Liderança na Escola de Negócios de Harvard. Como membro da terceira geração da família Cisneros, assumiu um papel fundamental na expansão do grupo empresarial, com foco em novas linhas de negócio. É CEO do Tropicalia, um projeto de desenvolvimento turístico de luxo da República Dominicana, e se destaca como promotora da responsabilidade social empresarial, liderando a Fundación Cisneros para melhorar a educação na América Latina. Além disso, faz parte do conselho de administração do MoMA PS1 e do Latin America Board da Universidade de Georgetown. [Venezuela]