Javier Milei, o profeta da polarização

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14 nov 2024

Javier Milei ganhou as eleições sem partido nem equipes, sem experiência de Estado, sem financiamento. Ofereceu a uma sociedade angustiada um programa radical de cortes e mão pesada quando detectou que, diante da persistência da crise econômica, o caos podia ser uma opção mais atrativa do que o conhecido. E se os argentinos iam tomar uma decisão temerária, a comunicação tinha que cumprir com o seu dever: ajudá-los.

O sucesso de Milei está na sua capacidade de assimilar a transformação do discurso, da estética e da convivência política. Sua campanha, primeiro, e seu governo, depois, souberam explorar a ira social a seu favor a partir da polarização extrema e da agressão estratégica.

Ele cai como uma luva no estereótipo de presidente-troll, guiado pela lógica dos algoritmos que regem as redes sociais. Virar “tendência” é uma questão de Estado para Milei. Ele comemora as métricas de visualização dos seus tuítes como troféus, sem vergonha de se comparar a figuras globais que o inspiraram, como Donald Trump. Ele pensa nos espectadores antes de pensar nos cidadãos. Uma rede de influencers amplia a narrativa oficial, ataca os adversários e aponta traidores.

Não existem armas proibidas para chamar a atenção. Que símbolo melhor do que a imagem dele com uma motosserra ligada e a promessa, que ele pretende liderar, de “destruir o Estado”? Até a vulgaridade pode ser um valor. Milei entendeu isso bem quando incorporou a palavra “carajo” ao seu grito de guerra: “Viva a liberdade!”. Irritar alguns não tem importância se em troca consegue estimular outros tantos.

Os seus críticos costumavam ressaltar a fraqueza institucional da sua formação: “É ele, sua irmã e seus cinco cachorros”. Com o tempo descobriram que a descrição seria intoleravelmente injusta se não incluísse o guru da comunicação, Santiago Caputo. O consultor de 38 anos desenhou a campanha presidencial e é, atualmente, chefe virtual da administração, em que pese, no papel, ser um simples assessor.

Milei foi um diamante bruto nas mãos de Caputo. Os produtores de televisão foram os primeiros a detectar algo magnético naquele personagem capaz de combinar a análise acadêmica e o insulto na ponta da língua; o cabelo bagunçado e a sobriedade do terno escuro; a moral religiosa e a fúria contra o sistema. Durante os anos em que os argentinos começaram a sentir a decadência como um destino, fizeram dele um apresentador de TV em tempo integral.
 

Os produtores de televisão detectaram algo magnético nesse personagem. O transformaram em um apresentador de TV em tempo integral quando os argentinos começavam a sentir a decadência como um destino

 
Caputo ajudou Milei a deixar de ser uma caricatura sem perder a espontaneidade. Aplicou métodos e padrões que já faziam sucesso em outros países da região. A liderança agressiva, messiânica e segregadora atravessa a América Latina como uma nova normalidade, da experiência de Jair Bolsonaro, no Brasil, a Gustavo Petro, na Colômbia, de Nayib Bukele, em El Salvador, a Andrés Manuel López Obrador, no México.

O chavismo e seus aliados – como o kirchnerismo que Milei derrotou – destacam-se como uma inspiração distante para esses exercícios polarizadores. Se aqueles “pioneiros” da esquerda lutavam contra a oligarquia, o monstro de Milei é o Estado.

A técnica foi aperfeiçoada pelos “engenheiros do caos” que dominam a intermediação digital. Eles trabalham com a premissa de que existe uma transferência de poder da esfera política para a tecnológica: a discussão saiu dos cafés e dos estúdios de televisão e foi para o telefone celular.

As dinâmicas das plataformas visam aumentar o tempo que um usuário passa conectado. As mensagens inflamadas triunfam sobre o debate tranquilo. Se o adversário for ferido, melhor. A tolerância e a divergência são empurradas para o canto desprezado do politicamente correto.

Milei interpreta um roteiro bastante testado. Vende-se como o carrasco que vai acabar com “a casta” que condena o seu país ao fracasso e traça a linha que divide os bons e os maus. O talento dele para provocar a raiva aterroriza os adversários: ele aponta para a opinião pública quem deve ser culpado e quem deve ser escolhido na nova ordem.

Faz da contradição uma virtude. No ecossistema digital, funcionam diversas mensagens para públicos diferentes e é possível forjar maiorias por meio da interação com comunidades dispersas. Basta uma segmentação inteligente.

Diferente de outros da sua espécie, o presidente argentino é, antes de um líder, alguém que crê. Um profeta de ideias que vão transformar a Argentina “na nação mais próspera da Terra”. Ao liberalismo que prega, ele acrescenta um componente moral que radicaliza toda a discussão.

Em tempos em que as pessoas se afastam da política, ele propõe uma mitologia. Sua âncora identitária é um passado de grandeza econômica, papel desempenhado, em outras latitudes, pelo nacionalismo, pela religião e pela raça.

Com frequência ele recorre ao grito e ao insulto. É tido como “autêntico”: se a política é um teatro, ele sobe ao palco para interpretar a si mesmo.
 

Ele diz que o jornalismo é do passado e que os meios de comunicação tradicionais já não influenciam a formação da opinião pública. Gosta de estar nas redes sociais e conversar com comunicadores que o deixam falar

 
Por isso renega os artifícios da política clássica. Em oito meses de governo, Milei não deu nenhuma entrevista coletiva. Diz que o jornalismo é algo do passado e que os meios de comunicação tradicionais já não influenciam a formação da opinião pública. Não se sente atraído a fazer discursos atrás de um púlpito. Se for obrigado, dá aulas magistrais de teoria econômica. Por outro lado, gosta de estar nas redes sociais e conversar com comunicadores que o deixam falar sem ser interrompido.

Dessa forma construiu uma liderança subversiva e avassaladora. Agora, enfrenta o desafio já vivido por seus admirados Trump e Bolsonaro. A polarização extrema costuma ser uma faca de dois gumes: bem sucedida para alcançar o poder, perigosa para exercê-lo de maneira eficiente.

Martín Rodríguez Yebra
Martín Rodríguez Yebra
Secretário de Redação do La Nación

Nascido em Buenos Aires em 1974. Entrou no La Nación em 1997, onde ocupou vários cargos, entre eles o de redator de várias editorias, colunista e editor-chefe de Política. Entre 2013 e 2017 foi correspondente na Espanha, sediado em Madri. Desde 2018 é Secretário de Redação, liderando as editorias de Política e Esportes, e é colunista político do LN+. Além disso, compartilhou sua experiência como professor na Universidad Torcuato Di Tella e no Mestrado em Jornalismo do La Nación. É formado em Jornalismo pela Universidad del Salvador e tem uma pós-graduação pela Universidade de Miami. [Argentina]