Doenças raras no Brasil: Desafios, conquistas e caminhos futuros

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Meu filho Anthony, foi diagnosticado com síndrome de Hunter ou mucopolissacaridose tipo II (MPS II) aos três anos de idade. Para muitos pais e mães, ter o filho diagnosticado com uma doença rara chega a ser desesperador, afinal, cerca de 30% das crianças acometidas morrem antes dos cinco anos de idade. À época, corri atrás de alternativas para que o Anthony não fizesse parte dessa estatística. Tempos depois, estava eu em um voo com destino ao Japão em busca de uma terapia para mudar a vida do meu filho, a minha própria e, por consequência, transformar a realidade da comunidade dos raros no Brasil.

O dia 29 de fevereiro foi escolhido para representar o Dia Mundial das Doenças Raras justamente por sua singularidade de ocorrer apenas em anos bissextos, como em 2024. Este ano temos um dia a mais para lutar para garantir o direito à vida a um contingente de 350 milhões de pessoas em todo o mundo, de acordo com estimativa da Orphanet, plataforma global dedicada a doenças raras e atualizada por uma rede de estabelecimentos acadêmicos de 40 países.

No Brasil, são estimadas 13 milhões de pessoas. De forma coletiva, não são raros. Ou seja, não podem ter sua existência negligenciada. São crianças, jovens e adultos que têm suas vidas cerceadas por uma condição de saúde, mas cada um deles tem sua jornada de vida e sonhos como todos os demais. Eles não são invisíveis e não podem ser tratados como. 

Quando digo estimativa, não é apenas uma expressão de linguagem. Um dos grandes desafios que enfrentamos no Brasil é a subnotificação e o diagnóstico tardio. Desde os primeiros sintomas até a identificação da doença, a pessoa passa por diversos profissionais de saúde em uma epopeia que dura de sete a dez anos de investigação.

Isso se deve a uma série de fatores, como a falta de conscientização da sociedade sobre as doenças, a dificuldade de acesso a médicos especialistas, o tratamento de comorbidades em vez da causa e até mesmo o desconhecimento das cerca de 7 mil doenças raras por grande parte dos profissionais de saúde. Dos 740 mil que temos hoje no país, menos de 1 mil conseguem interpretar um teste genético.

Assim como tantos pais e mães raros que lutam diuturnamente pela sobrevivência de seus filhos, fui compreendendo os meandros do sistema integrado de saúde e da política no Brasil, buscando provocar, sensibilizar e mobilizar pessoas. Até 2017, o Sistema Único de Saúde (SUS) só dispunha de uma terapia para tratamento de doenças raras. Hoje são mais de 15 medicamentos aprovados, além de diversos processos em discussão na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec), por meio de consultas públicas, permitindo as contribuições da sociedade civil.

Quando olho para o Anthony, hoje com 14 anos, reflito sobre como nossa jornada até aqui é marcada por conquistas. Evoluímos criando processos baseados em evidências para suportar nossa atuação de advocacy junto a gestores e profissionais de saúde, representantes dos poderes legislativo, executivo e judiciário, membros de agências reguladoras e entidades de classe, indústria farmacêutica e claro a sociedade.

Entretanto, os benefícios conquistados até aqui não estão totalmente garantidos. Ainda que a Portaria Nº 199, de 2014, que instituiu a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, represente um grande avanço, é um documento frágil. O nosso propósito é trabalhar em um ecossistema onde esses atores possam converter boas intenções em políticas públicas que compreendam as reais necessidades da comunidade dos raros e avançarmos para ações concretas e perenes em todo o território nacional, promovendo equidade na saúde, independente do governo vigente. O direito à vida não pode ser algo etéreo, como está na Constituição Brasileira, pois o tempo é crucial para as pessoas com doenças raras, que não podem depender da boa vontade do aval político. 

O trabalho em prol da comunidade dos raros é fundamentado em dados, fatos e, infelizmente, na perda de vidas. Portanto, é mandatório ampliar a conscientização sobre as doenças, todas as questões envolvidas e especificamente as jornadas das pessoas. É dessa forma que podemos fortalecer a nossa atuação cobrando acesso à informação, transparência na gestão pública e, consequentemente, como parte interessada, ajudar a definir como o recurso deverá ser utilizado.

Somente por conta disso tivemos conhecimento do inaceitável descarte de vacinas e medicamentos vencidos. Este fato apenas escancara que, o que falta ao SUS não são recursos para custear terapias, mas sim o compromisso com planejamento e gestão do dinheiro público. Atrelam judicialização de tratamentos de alto custo ao impacto no orçamento público, mas o problema é de má gestão.

Acredito firmemente que, ao investirmos na melhoria dos processos de comunicação e na conscientização sobre as doenças raras, podemos promover mudanças significativas. Essa luta não se limita apenas às pessoas que convivem com doenças raras, mas tem impacto direto no futuro dos tratamentos de saúde no Brasil como um todo. Ao enxergarmos as doenças raras como um investimento na saúde da população, podemos impulsionar avanços e adentrar em uma nova era baseada na medicina de precisão.

Por Antoine Daher

Fundador da Casa Hunter e presidente da Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras (Febrararas)