CONSUMIDORES E MARCAS EM TEMPOS DE COVID-19

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25 Mar 2020

A 11 de março de 2020, a OMS declarou a situação de pandemia global em consequência do coronavírus, um marco cujas consequências finais ainda são desconhecidas, mas que sabemos já terá um custo elevado, tanto humano quanto económico, em todo o planeta. Vivíamos já num contexto volátil e incerto, complexo e ambíguo, mas a COVID-19 aumentou cada uma destas características em tudo o que nos envolve, e está também a provocar uma disrupção na aceleração de algumas das tendências de que temos vindo a falar nos últimos tempos.

Respeitando a situação complexa que as pessoas e as empresas vivem neste momento, e com a prudência que advém do reconhecimento de que estamos perante um fenómeno vivo e em evolução, aventurámo-nos a tentar encontrar algumas evoluções potenciais na relação entre consumidores e marcas durante e, especialmente, após esta pandemia.

EVOLUÇÃO DAS MARCAS

Flexibilidade na estratégia

Numa situação de constante mudança e com as consequências que o choque da pandemia vai deixar, as marcas que ainda não o faziam, especialmente as que derivam de empresas altamente verticalizadas e com pouca capacidade de resposta no curto prazo, terão cada vez mais de aprender não só as estratégias, mas também por vezes os próprios modelos de negócio das startups, bem como das grandes empresas de tecnologia, que a dada altura foram ágeis na capacidade de transformação e adaptação. Neste sentido, é significativa a mudança da revista Time Out, focada em planos sobre coisas para fazer fora de casa e transformada durante a crise na Time In, com uma mudança nos conteúdos para o entretenimento doméstico, ou a retirada de campanhas (consideradas não sensíveis) de âmbito internacional por parte de marcas como a KFC ou a Hershey’s. Um plano rígido pode transformar-se numa prisão que impede a obtenção de resultados num ambiente em mudança. A importância de construir e, especialmente, de gerir marcas com uma identidade forte, mas líquida, que possam adaptar a respetiva estratégia sem a trair, torna-se crítica para saber responder de forma coerente a diferentes cenários.

ANTECIPAÇÃO COMO MANTRA

Confiar na investigação ajuda-nos a compreender o improvável ou mesmo imprevisível e a trabalhar sobre o mesmo. Na era das mudanças extraordinárias, as marcas procurarão mais do que nunca ter uma visão holística da realidade e trabalhar sempre um passo à frente. O apoio na análise preditiva pode ajudar a melhorar a capacidade de reação e a estar preparado para liderar as tomadas de decisão de acordo com a conjuntura. Não se trata apenas de prever fenómenos específicos, mas também e especialmente de ser capaz de lidar com cenários que vão além dos objetivos de curto prazo.A utilização de tecnologia de análise de dados para a gestão da crise, com o caso da Coreia do Sul na vanguarda, será um incentivo para que as marcas que ainda não o fizeram comecem a incluir uma maior componente de dados nos respetivos sistemas de gestão e a ativá-la para transformar os modelos de inovação.

COLABORAÇÃO COM O CONSUMIDOR

Hoje, mais do que nunca, as marcas pertencem às pessoas. A análise da comunicação da marca durante a crise mostra-nos que não vale a pena pretender ser mais rápido ou mais original que os consumidores. As marcas com maior reconhecimento público na reação que tiveram foram as que se adaptaram às conversas que os utilizadores já estavam a promover e as que encontraram o ponto de ligação com o objetivo de serem relevantes. Fizeram-no de três maneiras: oferecendo valor sob a forma de descontos ou serviços / produtos gratuitos (o caso da Naturgy, com energia gratuita para hotéis e residências, ou de operadores de telecomunicações que oferecem serviços de entretenimento ou dados); gerando uma sensação de conforto e compreensão através da comunicação (o caso da Ikea ou da Vodafone com as campanhas que levam a cabo em Espanha); ou sendo úteis nestes momentos tão difíceis (Inditex ou Pernod Ricard, produzindo, respetivamente, EPI ou desinfetantes). Os que tentaram manter a comunicação habitual ou, em alguns casos, usar a crise como uma desculpa oportunista, foram recebidos com rejeição pela sociedade.

“Confiar na investigação ajuda-nos a compreender o improvável ou mesmo imprevisível e a trabalhar sobre o mesmo. Na era das mudanças extraordinárias, as marcas procurarão mais do que nunca ter uma visão holística da realidade e trabalhar sempre um passo à frente.”

ENVOLVIMENTO COM A SOCIEDADE

Nestes tempos difíceis, o envolvimento das empresas com as sociedades onde operam também se torna evidente. O exemplo de numerosas marcas que atualmente imbuíram a comunicação e marketing de uma aura de responsabilidade e sensibilidade coloca-nos mais do que nunca perante o papel social das marcas, que não compete com o dos organismos públicos, mas que o complementa e valoriza. As que já estavam a trabalhar na ativação do propósito que têm alcançam-no agora com maior facilidade no momento de estabelecer uma ligação com a sociedade em abordagens que transcendem a atividade comercial habitual ou as próprias capacidades económicas. A atenção que dão aos grupos mais afetados (principalmente aos idosos), em especial no caso do retalho de alimentos, também acentua uma linha de marcas mais empáticas e humanizadas, desvinculadas de certos valores corporativos que muitas vezes têm sido priorizados. Neste sentido, o envolvimento social manifesta-se de forma mais clara quando se traduz na atitude dos líderes, e especialmente dos CEO das empresas, como figuras-chave que, com o próprio exemplo, transmitem os valores da empresa.

ATIVISMO ESTÁVEL

Em tempos de perda generalizada de confiança, esta torna-se um bem precioso e necessário,
e, para a construir, a comunicação é uma das ferramentas-chave que as marcas têm. Apoiar-se em plataformas e comunidades mais estáveis ajuda as marcas a reforçar a consonância das mensagens, reforçar a legitimidade e coerência e construir naturalmente o ativismo dos funcionários e consumidores. Hoje, mais do que nunca, as marcas e as empresas por trás das mesmas têm visto a necessidade de ter verdadeiros ativistas em todos os respetivos grupos de interesse, os quais partilham os valores e apoiam as decisões em momentos difíceis. Centrar a atenção na construção de um ativismo real e sustentado será uma das grandes tarefas do pós-crise.

AUTENTICIDADe RADICAL

A crise está a tornar ainda mais relevante a necessidade de a comunicação das marcas respirar autenticidade e transparência, mesmo nos momentos mais complexos. A areia movediça em que se tornou a comunicação de marca nestes tempos de crise é difícil de transpor, mas faz sobressair a comunicação de quem a constrói a partir da autenticidade, mesmo perante as decisões mais dolorosas, como no caso da já viral comunicação intitulada “Joder” da marca de sapatos Pompeii ou da mensagem emocional do presidente da Marriott nas redes sociais. Esta autenticidade tem muito a ver novamente com uma humanização das mensagens-chave, com o uso de um tom empático e próximo e, nomeadamente, com uma transparência complexa mas essencial.

“Centrar a atenção na construção de um ativismo real e sustentado será uma das grandes tarefas do pós-crise.”

Evolução dos consumidores

INCERTEZA E PROCURA DE SEGURANÇA

No relatório de tendências de 2020 falámos sobre o consumidor em crise, que tinha mantido características da crise económica, mesmo depois de esta ter passado. Parece claro que a sensação de ansiedade e incerteza que esta pandemia
está a gerar, impulsionada pelo medo da perda de empregos, acentuará estas características, que poderão afetar o consumo para além do momento específico do confinamento. Por outro lado, esta situação também tem mostrado que os cidadãos em geral olham para as marcas como um pilar de estabilidade nos momentos mais difíceis, em busca de um conforto ou de uma segurança que nem sempre encontram noutras áreas (embora o setor público vá assumir uma nova importância), levando a que as marcas que reforcem a sensação de tranquilidade e bem- estar criem laços emocionais mais positivos. A crise também vai levar a uma aceleração do consumismo consciente, dada a abundância de apelos à realização de compras on-line de empresas locais e de proximidade e ao apoio a marcas gravemente afetadas, com vista a poderem fazer entregas, quando terminar o confinamento.

CONSCIÊNCIA PESSOAL

A perceção da importância do autocuidado e do equilíbrio entre o corpo e a mente é outra tendência que já existe há muito tempo e que foi acelerada pela necessidade durante a pandemia. Especificamente, os conteúdos relativos a mindfulness, fitness, yoga ou meditação e as aplicações que os impulsionam estão a passar por um crescimento no consumo durante
os períodos de confinamento, enquanto se intensificam as conversas sobre o bem-estar pessoal ou a importância de gerir o próprio tempo para o prazer e o lazer, por oposição ao trabalho. O fim do confinamento transformar- se-á numa grande oportunidade para marcas e serviços relacionados com a saúde, a ciência, a atividade física e os cuidados pessoais, ao mesmo tempo que intensificará as conversas sociais sobre o equilíbrio entre o trabalho e a vida pessoal, e aumentará o gosto pela culinária em vez de alimentos preparados.

“Esta situação também tem mostrado que os cidadãos em geral olham para as marcas como um pilar de estabilidade nos momentos mais difíceis.”

CONSUMO DIGITAL E CRIATIVIDADE

O isolamento oferece-nos a oportunidade de explorar novas alternativas para nos divertirmos, comunicar, fazer compras ou trabalhar utilizando o mundo digital. O lazer virtual, o acesso às entregas no domicílio, a compra de produtos on-line e o uso de plataformas de teletrabalho vão reeducar os nossos hábitos e provocar uma mudança mais acelerada do que o esperado em áreas como a informatização, os serviços on-demand e o desenvolvimento do comércio eletrónico, fazendo também cair alguns debates regulatórios sobre a criação de barreiras a ferramentas ou empresas centradas no digital. Esta crise também está a acentuar a desintermediação de que já falámos em função de experiências como a da Amazon Go à época, reduzindo necessariamente o número de interações entre pessoas. Por outro lado, também incentiva a criatividade dos utilizadores das redes sociais, não só no momento de consumir, mas também no de produzir em massa o próprio entretenimento baseado em desafios, jogos, listas etc., o que também tem repercussões na popularização de ferramentas como o Instagram Live e na extensão do humor como um mecanismo para lidar com a ansiedade da situação.

O PARADOXO DA SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL

A consciência da sustentabilidade do planeta, a gestão dos resíduos, a importância do consumo de produtos biológicos, a poluição, a reciclagem ou o cuidado com o meio ambiente assumem especial relevância neste contexto de reflexão. Por um lado, esta pandemia é a maior experiência global de redução da poluição. A NASA relatou que, por exemplo, a poluição foi
reduzida em 30 % entre 1 e 20 de janeiro na China, e algo semelhante aconteceu em Itália, de acordo com dados do satélite europeu Sentinel-5P. Por outro lado, o debate sobre sustentabilidade ambiental, que se tornou tão importante recentemente através do impulso dado à divulgação sobre a urgência climática, provavelmente será ofuscado por outras prioridades relacionadas com a procura de segurança e a atenção a dar à saúde pessoal, ainda que o caso da China nos deixe a lição do modo como provocou uma procura crescente de produtos biológicos e um aumento da preocupação com os cuidados ambientais. Resta saber para que lado se inclinará a balança, quando o choque inicial da crise der lugar a uma reflexão
no longo prazo.

CONSUMIDORES EXIGENTES

A necessidade de gerir o nosso tempo, a importância das relações pessoais, o cuidado do nosso ambiente mais próximo, a consciência social, a gestão inteligente dos recursos… Os consumidores estão a aprender mais depressa, todos os dias, e procuram marcas significativas que sejam úteis e que se transcendam os aspetos menos superficiais, para se concentrarem em tornar as vidas mais fáceis e mais simples. A necessidade de informação constante provocada pela situação de pandemia também acentuará as expectativas dos consumidores no que respeita à transparência dos processos, especialmente nos casos que têm a ver com a segurança alimentar, como assistimos hoje com o esforço feito pelos serviços de entregas no domicílio para informar constantemente os respetivos utilizadores sobre os protocolos seguidos para evitar a contaminação dessas entregas. Da mesma forma que atualmente as autoridades não se cansam de exigir dos cidadãos a exemplaridade necessária para superar a situação, essa mesma cidadania vai exigi-la de volta, mais do que nunca, não só das instituições, mas também das marcas com as quais se relacionam.

UMA NOVA EMPATIA VS. ISOLAMENTO

24 horas de convivência diária obrigam-nos a trazer à superfície toda a nossa criatividade, partilhar novas formas de entretenimento familiar e aprender a administrar as nossas próprias emoções e as dos outros. Nesse sentido, a pandemia está a reforçar o papel das relações afetivas, da construção de valores de equipa nas empresas e a importância da luta e colaboração conjuntas para enfrentar as adversidades. Está também a ser dada uma maior atenção ao bem- estar pessoal e relacional, acima da acumulação de riqueza ou do consumo desenfreado, em linha com a previsível estagnação do crescimento económico. Os debates sobre o bem coletivo podem ser muito significativos no contexto de novas eleições, por exemplo nos EUA, onde a sensação de insegurança da crise apoia posições mais progressistas sobre a importância do setor público, nomeadamente, sobre a cobertura dos sistemas de saúde. Paradoxalmente, a crise e o confinamento continuado também irão aumentar a sensação de isolamento e a explosão de sintomas próximos da perturbação de stresse pós-traumático.

“A pandemia está a reforçar o papel das relações afetivas, da construção de valores de equipa nas empresas e a importância da luta e colaboração conjuntas para enfrentar as adversidades.”

Autores

David González Natal
Marlene Gaspar
Guillermo Lecumberri

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